MÉDICO DA ALMA
Em meados deste ano, uma grande amiga me conta aos
prantos, que seu netinho de três anos, se encontra hospitalizado, mais uma vez,
após três ou quatro internações, sem que os médicos consigam fazer um
diagnóstico, deixando a família e amigos em pânico.
Este relato me trouxe a lembrança uma situação semelhante
que passamos com nosso filho mais novo. Com três meses de idade ele passou a
fazer uma infecção de 15 em 15 dias. Penamos por três longos anos, idas e
vindas a consultórios, exames e mais exames, cada uma mais assustador do que o
outro, sem que qualquer diagnóstico próximo da realidade fosse apresentado. Até
que um dia, após três anos de muita apreensão, foi identificada a causa:
simplesmente Amígdalas e Adenoides muito grandes, com a cirurgia realizada,
problema resolvido!
Quando falava com esta amiga ao telefone, me veio à
lembrança o Dr. Paulo Carneiro, médico que conheci, nos meus tempos de
infância, em Laguna.
Época em que, ainda sem o compromisso dos bancos
escolares, passava o tempo brincando, até as quatro horas da tarde, quando
invariavelmente, corria ao portão de madeira, na frente de casa, e lá ficava
esperando meu pai voltar do trabalho, no Porto de Laguna o que acontecia,
rigorosamente, todos os dias pouco depois deste horário.
Eu sorria contente, quando já conseguia avistá-lo, vindo
com seu andar cadenciado, fisionomia sempre séria, a garrafa de café balançando
na mão. Eu abria o portão e corria para os seus braços. O seu rosto então se
iluminava com um sorriso lindo. Ele me erguia do chão, dava um beijo estalado
na minha bochecha me rodopiava em seu colo, só um pouquinho. E vínhamos juntos,
de mãos dadas, às vezes eu lhe contava algo, às vezes ele. Mas também vínhamos
em silencio. Contudo, numa certa tarde, percebi já de longe, que havia algo
errado.
Certo dia, quando
fui esperá-lo, notei que a garrafa vinha segura com firmeza embaixo do braço e
o seu passo estava muito mais apressado, sua fisionomia bem mais fechada e ele
sequer se abaixou para me rodopiar em seu colo, como sempre fazia.
Ele nada falou, apenas segurou a minha mão com firmeza e
entrou portão adentro, chamando por minha mãe, e me levando quase de arrasto:
-Maria, Maria!
- O que foi meu velho?
O que tens?
- Manda chamar o Doutor
Paulo, pelo amor de Deus!
O medo mostrou novamente sua cara em meu coração. O
rebuliço foi geral, não lembro qual dos meus irmãos foi requisitado para tal
tarefa, mas até pareciam baratas tontas, correndo para um lado e para o outro.
Fiquei esquecida naquele turbilhão, e muito
silenciosamente, fui até o quarto espia-lo. Ele rolava na cama de um lado para
o outro dizendo desesperado, com a mão na cabeça:
-Ai! Ai Meu Deus, meu
Pai, que dor!
A maioria das pessoas que eu conhecia exclamava Meu Deus.
Ele ainda acrescentava Meu Pai! Eu sempre achei muito bonito e sentia uma coisa
boa dentro de mim. Às vezes, esta exclamação saia junto com um suspiro fundo.
Aproximei-me pé ante pé e como sempre tivera carta branca
naquela cama, nela me encarapitei e tentei tocá-lo. Para meu espanto, fui
afastada por sua mão crispada e ele mandou que eu saísse. Minha mãe correu em
meu socorro e disse:
-Vai prá lá menina, o
pai agora não pode!
Agora, já não era mais medo. Era pavor! O meu pai, sempre
tão forte, meu esteio e segurança, estava doente! Corri para perto de minha
cachorrinha e fiquei sentada na calçada, entre apavorada e pensativa, coração
apertado e sem saber exatamente o que fazer!
Resolvi voltar para dentro de casa e fiquei na sala que
ficava ao lado do quarto, sentada no sofá, ouvindo os seus gemidos, com o
coração cada vez mais apertado. Até que, finalmente, ouvi as vozes dos meus
irmãos chegando e a porta da frente se abriu com um estrondo.
O vento nordeste pareceu entrar junto com aquele
personagem. A porta da sala, que dava para a cozinha bateu, anunciando sua
chegada. Era um senhor baixinho careca e barrigudo, com uma maleta de couro,
típica dos médicos, balançando prá lá e prá cá, igualzinho à garrafa de café.
Ele entrou como se a casa fosse dele e exclamou, com uma voz assaz anasalada:
- O que é Roldão? Que é
que tu tais de manha em cima desta cama homem?
-Ai Doutor Paulo! Não
sei! É muita dor!
O resto do diálogo eu não pude ouvir. Novamente fui
retirada do recinto.
Quando as coisas se acalmaram, a dor passara, eu já sentada
em seu colo perguntei quem era aquele médico, e ele me disse sorrindo e
aliviado:
-É o Doutor Paulo,
minha filha! Quando escutei sua voz, metade da dor sumiu!
Eu fiquei espantada com a afirmação. Mas meu coração
gravou aquela frase. Creio que foi neste instante que primeiro compreendi o que
era a palavra confiança, sem o saber. Muitas histórias eu ouvi sobre aquele
medico aquela tarde, enquanto ganhava o meu colinho antes da janta. Sobre como
ele era bom para os pobres, como era excelente político, como tantas vezes
saíra de sua casa, à noite, para ir ao morro do cemitério, onde morávamos
atender um de nós ou nossa mãe em trabalho de parto, inclusive do meu, quando
já morávamos na casa do Mar Grosso! Fiquei tão embevecida com aqueles relatos
que, de imediato, também estabeleci com ele uma relação de confiança.
Este médico, o Doutor Paulo Carneiro nesta época, com a
idade próxima do meu pai, ainda me tratou por um bom tempo. Adorava ele, pois
sempre me receitava um remédio com gosto de chocolate, o Ambrasinto.
Um dia, não sei por que acordei na arca de Noé (uma cama
enorme onde dormiam os meus irmãos quando eram pequenos) muito fraca, sem conseguir
me levantar. Esta minha indisposição que no início fora tratada como normal, se
estendeu até o horário do almoço. Por coincidência, neste dia recebemos em
nossa casa a Noêmia, uma visitante ilustre, filha do Compadre Joca, da Caputera.
Quando chegou e soube que eu não estava bem a Noêmia prontamente foi até o
quarto me ver. Após dirigir-me aquele olhar carinhoso costumeiro e me abraçar
forte (como era bom o seu abraço) eu consegui ouvir, quando ela cochichou no
ouvido da minha mãe:
- São as regras dela
que querem descer e não conseguem.
Não sei por que, fiquei mais confiante depois de ouvir
esta explicação. Com três irmãs adultas, e muitas amigas que já “eram mocinhas”
eu já sabia que um dia também sangraria como elas, todos os meses, embora o
assunto fosse tratado como em todas as casas: não era discutido, nem explicado,
simplesmente acontecia!
No dia seguinte, fui levada pelo meu Pai até a casa do
Doutor Paulo e lá, fui recebida com muito carinho, como se fosse uma visita
ilustre. Dona Ludmila, sua esposa, nos recebeu atenciosamente, eu me senti a
vontade.
Quando ele colocou o jaleco, dirigiu-se a mim sorrindo e
disse, com sua voz fanha, que eu já gostava:
-Vem aqui menina, quero
te ver.
Olhou para o meu pai e disse:
- Nada que uma
vitaminazinha A não resolva!
-É ambrasinto? Eu
perguntei brincando.
Os dois riram muito e disseram que não!
Dali a algum tempo menstruei. A Noêmia não era o Doutor
Paulo, mas também sabia das coisas!
Doutra feita, bem mais tarde, comecei a ficar com um
vergão na pele, cada vez que me coçava ou tocava. Novamente fui atendida por
ele, em sua casa, com toda deferência. Nesta época ele ficava durante o inverno
no Rio de Janeiro e o verão em Laguna. Lembro muito bem da sua fisionomia bem
mais velha, com os óculos na ponta do nariz, chegou bem perto do meu corpo, e
riscou a minha barriga com o dedo indicador. O vergão imediatamente se formou.
Ele não disse nada. Escreveu o nome do remédio no formulário de receitas e nos
fomos para casa.
Falando com minha amiga Miriam, relembrando Igor e Dr. Paulo,
fiquei pensando ao colocar o fone no gancho:
- O que era ensinado na
faculdade de medicina que ele cursou que hoje não se ensina mais? Não existiam
tantos exames, máquinas superpoderosas, e ele conseguia dar o diagnóstico
corretamente.
Será porque os médicos de hoje tratam “pacientes” e não
mais “pessoas”?
Ou será que isto ocorre porque eles, os médicos, foram
transformados em meros vendedores de remédios?