domingo, 12 de janeiro de 2014

MÉDICO DA ALMA
            Em meados deste ano, uma grande amiga me conta aos prantos, que seu netinho de três anos, se encontra hospitalizado, mais uma vez, após três ou quatro internações, sem que os médicos consigam fazer um diagnóstico, deixando a família e amigos em pânico.
            Este relato me trouxe a lembrança uma situação semelhante que passamos com nosso filho mais novo. Com três meses de idade ele passou a fazer uma infecção de 15 em 15 dias. Penamos por três longos anos, idas e vindas a consultórios, exames e mais exames, cada uma mais assustador do que o outro, sem que qualquer diagnóstico próximo da realidade fosse apresentado. Até que um dia, após três anos de muita apreensão, foi identificada a causa: simplesmente Amígdalas e Adenoides muito grandes, com a cirurgia realizada, problema resolvido!
            Quando falava com esta amiga ao telefone, me veio à lembrança o Dr. Paulo Carneiro, médico que conheci, nos meus tempos de infância, em Laguna.
            Época em que, ainda sem o compromisso dos bancos escolares, passava o tempo brincando, até as quatro horas da tarde, quando invariavelmente, corria ao portão de madeira, na frente de casa, e lá ficava esperando meu pai voltar do trabalho, no Porto de Laguna o que acontecia, rigorosamente, todos os dias pouco depois deste horário.
            Eu sorria contente, quando já conseguia avistá-lo, vindo com seu andar cadenciado, fisionomia sempre séria, a garrafa de café balançando na mão. Eu abria o portão e corria para os seus braços. O seu rosto então se iluminava com um sorriso lindo. Ele me erguia do chão, dava um beijo estalado na minha bochecha me rodopiava em seu colo, só um pouquinho. E vínhamos juntos, de mãos dadas, às vezes eu lhe contava algo, às vezes ele. Mas também vínhamos em silencio. Contudo, numa certa tarde, percebi já de longe, que havia algo errado.
             Certo dia, quando fui esperá-lo, notei que a garrafa vinha segura com firmeza embaixo do braço e o seu passo estava muito mais apressado, sua fisionomia bem mais fechada e ele sequer se abaixou para me rodopiar em seu colo, como sempre fazia.
            Ele nada falou, apenas segurou a minha mão com firmeza e entrou portão adentro, chamando por minha mãe, e me levando quase de arrasto:
-Maria, Maria!
- O que foi meu velho? O que tens?
- Manda chamar o Doutor Paulo, pelo amor de Deus!
            O medo mostrou novamente sua cara em meu coração. O rebuliço foi geral, não lembro qual dos meus irmãos foi requisitado para tal tarefa, mas até pareciam baratas tontas, correndo para um lado e para o outro.
            Fiquei esquecida naquele turbilhão, e muito silenciosamente, fui até o quarto espia-lo. Ele rolava na cama de um lado para o outro dizendo desesperado, com a mão na cabeça:
-Ai! Ai Meu Deus, meu Pai, que dor!
            A maioria das pessoas que eu conhecia exclamava Meu Deus. Ele ainda acrescentava Meu Pai! Eu sempre achei muito bonito e sentia uma coisa boa dentro de mim. Às vezes, esta exclamação saia junto com um suspiro fundo.
            Aproximei-me pé ante pé e como sempre tivera carta branca naquela cama, nela me encarapitei e tentei tocá-lo. Para meu espanto, fui afastada por sua mão crispada e ele mandou que eu saísse. Minha mãe correu em meu socorro e disse:
-Vai prá lá menina, o pai agora não pode!
            Agora, já não era mais medo. Era pavor! O meu pai, sempre tão forte, meu esteio e segurança, estava doente! Corri para perto de minha cachorrinha e fiquei sentada na calçada, entre apavorada e pensativa, coração apertado e sem saber exatamente o que fazer!
            Resolvi voltar para dentro de casa e fiquei na sala que ficava ao lado do quarto, sentada no sofá, ouvindo os seus gemidos, com o coração cada vez mais apertado. Até que, finalmente, ouvi as vozes dos meus irmãos chegando e a porta da frente se abriu com um estrondo.
            O vento nordeste pareceu entrar junto com aquele personagem. A porta da sala, que dava para a cozinha bateu, anunciando sua chegada. Era um senhor baixinho careca e barrigudo, com uma maleta de couro, típica dos médicos, balançando prá lá e prá cá, igualzinho à garrafa de café. Ele entrou como se a casa fosse dele e exclamou, com uma voz assaz anasalada:
- O que é Roldão? Que é que tu tais de manha em cima desta cama homem?
-Ai Doutor Paulo! Não sei! É muita dor!
            O resto do diálogo eu não pude ouvir. Novamente fui retirada do recinto.
            Quando as coisas se acalmaram, a dor passara, eu já sentada em seu colo perguntei quem era aquele médico, e ele me disse sorrindo e aliviado:
-É o Doutor Paulo, minha filha! Quando escutei sua voz, metade da dor sumiu!
            Eu fiquei espantada com a afirmação. Mas meu coração gravou aquela frase. Creio que foi neste instante que primeiro compreendi o que era a palavra confiança, sem o saber. Muitas histórias eu ouvi sobre aquele medico aquela tarde, enquanto ganhava o meu colinho antes da janta. Sobre como ele era bom para os pobres, como era excelente político, como tantas vezes saíra de sua casa, à noite, para ir ao morro do cemitério, onde morávamos atender um de nós ou nossa mãe em trabalho de parto, inclusive do meu, quando já morávamos na casa do Mar Grosso! Fiquei tão embevecida com aqueles relatos que, de imediato, também estabeleci com ele uma relação de confiança.
            Este médico, o Doutor Paulo Carneiro nesta época, com a idade próxima do meu pai, ainda me tratou por um bom tempo. Adorava ele, pois sempre me receitava um remédio com gosto de chocolate, o Ambrasinto.
            Um dia, não sei por que acordei na arca de Noé (uma cama enorme onde dormiam os meus irmãos quando eram pequenos) muito fraca, sem conseguir me levantar. Esta minha indisposição que no início fora tratada como normal, se estendeu até o horário do almoço. Por coincidência, neste dia recebemos em nossa casa a Noêmia, uma visitante ilustre, filha do Compadre Joca, da Caputera. Quando chegou e soube que eu não estava bem a Noêmia prontamente foi até o quarto me ver. Após dirigir-me aquele olhar carinhoso costumeiro e me abraçar forte (como era bom o seu abraço) eu consegui ouvir, quando ela cochichou no ouvido da minha mãe:
- São as regras dela que querem descer e não conseguem.
            Não sei por que, fiquei mais confiante depois de ouvir esta explicação. Com três irmãs adultas, e muitas amigas que já “eram mocinhas” eu já sabia que um dia também sangraria como elas, todos os meses, embora o assunto fosse tratado como em todas as casas: não era discutido, nem explicado, simplesmente acontecia!
            No dia seguinte, fui levada pelo meu Pai até a casa do Doutor Paulo e lá, fui recebida com muito carinho, como se fosse uma visita ilustre. Dona Ludmila, sua esposa, nos recebeu atenciosamente, eu me senti a vontade.
            Quando ele colocou o jaleco, dirigiu-se a mim sorrindo e disse, com sua voz fanha, que eu já gostava:
-Vem aqui menina, quero te ver.
            Olhou para o meu pai e disse:
- Nada que uma vitaminazinha A não resolva!
-É ambrasinto? Eu perguntei brincando.
            Os dois riram muito e disseram que não!
            Dali a algum tempo menstruei. A Noêmia não era o Doutor Paulo, mas também sabia das coisas!
            Doutra feita, bem mais tarde, comecei a ficar com um vergão na pele, cada vez que me coçava ou tocava. Novamente fui atendida por ele, em sua casa, com toda deferência. Nesta época ele ficava durante o inverno no Rio de Janeiro e o verão em Laguna. Lembro muito bem da sua fisionomia bem mais velha, com os óculos na ponta do nariz, chegou bem perto do meu corpo, e riscou a minha barriga com o dedo indicador. O vergão imediatamente se formou. Ele não disse nada. Escreveu o nome do remédio no formulário de receitas e nos fomos para casa.
            Falando com minha amiga Miriam, relembrando Igor e Dr. Paulo, fiquei pensando ao colocar o fone no gancho:
- O que era ensinado na faculdade de medicina que ele cursou que hoje não se ensina mais? Não existiam tantos exames, máquinas superpoderosas, e ele conseguia dar o diagnóstico corretamente.
            Será porque os médicos de hoje tratam “pacientes” e não mais “pessoas”?
            Ou será que isto ocorre porque eles, os médicos, foram transformados em meros vendedores de remédios?




CARNAVAL EM LAGUNA

         Laguna é a cidade do já teve. Já teve porto, os melhores colégios, ferrovia, três cinemas e teatro. Já foi até centro de referência em cultura no sul do Estado de Santa Catarina.
         No final dos anos 60 e início da década de 70 já não tinha quase mais nada. Para a juventude da época, não havia o que fazer, com o que se divertir, além de alguns bailes, do cinema das 18:30 e 20:30 no domingo, a voltinha no jardim, o sorvete da miscelânea e... casa!
         Excluindo a Festa de Santo Antônio, o ano inteiro era como já disse alguém: “a mais completa solidão”! Por isto, as crianças, os jovens e os adultos esperavam ansiosamente pelo verão e pelo Carnaval.
         O carnaval começava 15 dias antes, com o pré-carnaval, uma espécie de ensaio geral, onde os blocos desfilavam “todas as noites”, exceto as segundas, nas ruas da parte histórica da cidade. Era o Xavante, o Brinca quem pode, o Vila Isabel, e a querida Bandinha Maluca e os Palhaços de Momo, que ia e voltava,  com a criançada correndo atrás deles e deles também!
         Em geral, uma das mães levava toda a pirralhada, elas tentavam nos manter sentados e comportados no meio fio das calçadas, atrás das cordas que nos limitavam mas, no final da noite, as cordas já estavam frouxas, de tanto que passávamos por baixo delas.
         E junto com a batucada, as correrias, tinha o vento, o calor, o sorvete da miscelânea, o picolé de nata e de abacaxi, de butiá, de coco, que o nordeste derretia. Mas aquela delícia não era para todo mundo: só para quem podia. Quem não podia ficava  lambendo os beiços, suportando com galhardia o cheirinho da pipoca estalando, a barriga roncava loucamente, mas, o que importava? Ninguém ligava para isto. Barriga roncava o ano todo e o  Carnaval era curto demais para se ficar pensando nisto e não correr atrás da bandinha, por aquelas ruas estreitas, os pés doendo nos paralelepípedos, esbarrando nos locutores da Garibaldi e Difusora!
         Na volta para casa o cansaço era grande, mas era mais divertido ainda, todos comentando desta ou daquela escola, as gargalhadas da Dona Maria, o nordeste na paixão, areia batendo nos cambitos, mas isto ninguém sentia. Imagine só, onze horas, meia noite e todos na rua. Nem pensar em outra ocasião para isto acontecer. Não! Só o carnaval nos trazia esta liberdade de ficarmos longe do olhar vigilante dos pais e, ainda por cima, até tarde da noite!
         Mas, se por algum acaso, alguma mãe caridosa não podia nos levar para ver a festa de momo, no centro, em casa ninguém precisava ficar! No bairro do Magalhães ainda tínhamos a opção dos ensaios do Xavantes e da escola de samba do seu Djalma, o Aprendizes do Samba, na sua casa, que ficava  bem em frente ao atual clube 3 de maio.
         Lembro-me de um ano, que as carochas invadiram prá valer, a rua ficava preta, mas nem o cheiro medonho delas pisoteadas era suficiente para desestimular a nossa presença na pracinha.
         No ensaio daquelas escolas, o samba corria frouxo. Enquanto isto, na pracinha, as crianças brincavam de ré, de roda, esconde-esconde. Os mais afoitos e sapecas subiam na árvore, ficavam pendurados de todas as maneiras.
         Quando o calor batia, tínhamos o picolé do seu Artur que era bem mais barato que o da miscelânea e também era muito bom. Aliás, o que não era bom numa festa que era esperada o ano inteiro? Tudo valia. Até picolé de gelo!
         Tarde da noite, quando chegávamos em casa, eram só joelhos ralados,mil broncas, ir dormir com os ouvidos doendo e o couro quente das palmadas! Na cama, o que nos esperava era um colchão cheio de grumos, o calor e os mosquitos.
         Mas que nada! Diante de tanto cansaço ninguém prestava atenção nisto, e o colchão cheio de grumos parecia feito de penas!

06/2013