domingo, 19 de maio de 2013




INFÂNCIA

       Ao comprar uma máquina de costura novinha em folha, último tipo, viajei para um tempo distante, quando tinha algo em torno de 3 ou 4 anos de idade. Morávamos na “casa da dona Celina”, para onde fomos quando minha mãe morreu.
       Minha nova mãe bordava a máquina, no quarto onde dormia com meu pai. Eu dormia no mesmo quarto com eles, porque a casa não tinha muitos cômodos e éramos oito pessoas. Ainda tenho lembrança da minha cama pequena, transversalmente ao lado da deles. No quarto, havia uma janela alta, minha mãe precisava subir na cama para falar com a prima Maninha, que era sua vizinha, e também bordadeira.
       Como faziam os trabalhos juntas, numa daquelas tardes, ela parou de bordar e foi na casa da prima, fazer algo que não lembro o que era. Mais do que depressa eu pulei para a banqueta, que era alta.... e comecei a bordar!
       Só que, para bordar, era necessário movimentar o bastidor com as duas mãos e eu deixei o dedo indicador exatamente no meio do bastidor, próximo demais da agulha. Bordei alguns segundos e logo, traiçoeiramente, a agulha entrou firme na unha do dedo indicador direito
- Ô manhêêê.... deve ter sido um grito muito agudo!
        Pobre mãe! Chovia, ela veio correndo. O sangue deve ter manchado o tecido, quem sabe, teve até que pagar por um tecido novo, pois manchas de sangue não saem com muita facilidade.
      Engraçado, não me lembro da dor no momento de retirar a agulha do dedo.Esta dor, contudo, não deve ter sido tão forte a ponto de me fazer desistir de bordar, porque eu ainda repeti a façanha mais uma vez!Novamente, o mesmo grito! A mesma correria.
       Assim, ela não teve alternativa a não ser me ensinar a bordar. Primeiro, o cordonê, depois os bordados maiores. Durante algum tempo eu bordei. Cheguei até mesmo a receber o elogio máximo de uma virginiana perfeccionista:
- Olha só, Roldão! O cordonê dela é melhor do que o meu!
       Contudo, minha alegria durou pouco. Embora adorasse bordar, ela quase não me permitia, seja porque precisava estar bordando o tempo todo, eram muitas encomendas, seja porque as linhas eram sempre muito caras, e mesmo que eu pedisse as sobras, ela nunca as dava, porque dizia que ia precisar!
       Mas, ainda acho que ela teve mesmo foi ciúmes! Do seu bordado, daquela arte tão preciosa, que ela fazia tão bem. Como estava sempre junto com ela, ouvia embevecida, as suas conversas com a prima Maninha, sobre como fazer, o que fazer, quando fazer! Era um universo fascinante! Transformar um pedaço de pano em algo tão bonito de se ver! E os jogos de cama, em bordado Richillieu, então? E os bichinhos? Tão mimosos ficavam nos enxovais de bebê que elas faziam! Ninguém bordava como aquelas duas!
- “Qués veis, Maria, fais assim ó”!
       O tempo passando e eu, sempre curingando, perguntando como fazer. Ficava ao seu lado, olhando para ela bordar, via suas caretas, acompanhei sua visão, acabando, pouco a pouco, naquele labor noturno, até 2 ou 3 horas da madrugada.Tudo tinha que ser sempre muito perfeito, nada de mais ou menos.
       Havia também os serões que elas faziam. Eram sempre antes da Festa de Santo Antônio dos Anjos da Laguna. Sim, a Opa vermelha. Tinha um emblema do Santíssimo Sacramento, bordado em fios dourados. Ficava lindo, o meu pai, vestido naquele traje: terno marrom, sob a opa vermelha. E lá se ia ele, todo faceiro e, aos meus olhos, lindo de morrer!
       Outro serão, acontecia em 7 de setembro! Elas bordavam os bolsos dos uniformes do Colégio Ana Gondin e, às vezes, do Jerônimo Coelho! Viravam as noites bordando, na casa da Maninha. Eu ia junto com eles. Às vezes, ela e o pai voltavam para casa e me deixavam dormindo naquela cama de casal, tão grande! E eu, sempre tão medrosa de dormir sozinha, nem ligava quando me acordava, no outro dia, sem eles.
       Até que, passados alguns anos, quase chegando ao final do Ginásio, eu devo ter falado algo como bordar com ela, ou bordar para fora também! A resposta foi taxativa:
-Não! Tu não vais bordar para fora coisa nenhuma, que isto não é vida! Vais é trabalhar num escritório,  tu vais gostar, nasceste foi para isto!
       E assim, com esta sentença, adormecida foi, minha vocação para bordadeira!
       Mas, no meu coração, permanecem aquelas imagens, que soam quentinhas, de tão boas que são. Nem a lembrança da agulha enfiada no meu indicador me remete a alguma dor.... muito pelo contrário, apenas me lembra de quão obstinada eu era, e isto me faz bem.
       O seu exemplo de esmero, aquele primor de bordado, o avesso mais do que perfeito que ela fazia e ostentava com tanto orgulho, foram meu espelho, para as coisas que fiz e para os diversos trabalhos que realizei ao longo dos anos. Nunca comprei bordados prontos, nenhum me agradava, porque sempre ia direto ao avesso: terríveis!
       Agora, de cabelos brancos em minha nova infância, estou diante desta máquina de costura, tão novinha, me vendo novamente naquela expectativa de poder fazer algo tão belo quanto os bordados que ela fazia. Talvez, seja uma forma de reviver aqueles momentos de prazer, de reencontrar-me com a mãe que tive, sem nunca poder realmente ter! 

A ILHA


    Atrás da nossa casa, no bairro Magalhães, durante a minha infância, ainda existiam os trilhos da estrada de ferro Dona Tereza Cristina, que trazia o carvão de Criciúma e Capivari para o Porto de Laguna. Também havia, um alagamar. Era uma extensão da Lagoa de Santo Antônio, popularmente chamado assim.  O tal alagamar, nos dias de hoje, seria um terror de saúde pública. Melhor nem comentar o que boiava naquelas águas. Mas, todos nós brincávamos muito nelas. Também assistíamos grandes espetáculos durante o por do sol, sentados nos trapiches das canoas dos pescadores, depois de uma tarde inteira de folguedos, correrias e brincadeiras de todos os tipos.

   Minha amiga Regina e eu não éramos diferentes de qualquer uma das crianças da nossa rua. Bem, não éramos tão iguais assim. Ao contrário das outras crianças, também nos divertíamos muito lendo. Eu mesma, fui apelidada pelos meus irmãos de “pesquisa”, porque escolhia um tema e depois saia procurando livros sobre aquele assunto e, para desespero deles, falando sem parar sobre o que descobria. Na mesa do almoço, da janta, enquanto eles limpavam a casa, enquanto lavavam a louça, enfim, reconheço  que os importunei um bocado.

   Passamos por diversas fases de pesquisas, eu e ela. Tivemos a fase dos dinossauros, das pedras, das cidades que gostaríamos de conhecer e dos vulcões! Eu era fascinada por vulcões.

   Naquela época, do quintal da minha casa eu via todo o entorno da Lagoa de Santo Antônio, chegando mesmo a ver, em noites claras, da janela da cozinha, o facho da luz do Farol de Santa Marta. Quantas broncas levei, porque ficava hipnotizada olhando o vai e vem daquela luz em vez de dar conta da louça do jantar.

   Foi numa destas observações, pendurada no portão atrás de casa, que um dia, percebi uma certa ilha, no alagamar, já próximo da Passagem da Barra. Atrás desta ilha eu visualizei um morro, em forma de vulcão (como eu vira nas figuras das revistas) e, pasme, eu cismei que aquela  ilha tinha sido formada pela explosão DAQUELE VULCÃO,  que era composta de pedras vulcânicas. Tanto falei nisto com a Regina, que a convenci de pesquisar comigo e este passou a ser o nosso assunto preferido.

   Esta minha amiga Regina, ao contrário de mim, tinha avós maternos!

   Eles já eram idosos, e tinham que ouvir estas teorias, porque brincávamos a tarde inteira na parte do terreno onde ficava a casa deles. Eles conheciam a vida e sabiam que não se conseguia tirar leite de pedra. Cada um tem seu tempo e a fruta quando colhida prematuramente pode se perder. Por isto, tinham muito paciência conosco. Mas nos davam limites. Sabiam que éramos crianças, nada mais do que isto. Talvez um pouco precoces para aquela época, mas éramos somente duas crianças.

   Lembro dos olhos dele, para mim, sempre tristes e preocupados. Ele lutara na segunda guerra. Ela, sempre tinha para comigo um olhar bondoso que, no máximo, se estreitava um pouco quando ouvia algum disparate meu. Eu percebia a mancada e me calava ou mudava de  assunto.

   Nesta época, eu costumava passar tardes inteiras no rancho da casa deles, discutindo nossa teoria vulcânica com a Regina. Creio que devemos ter nos tornado insuportáveis quanto a este assunto, porque ,  o “vô Galdininho”, que era pescador, certo dia, pegou sua canoa e nos levou numa “expedição à ILHA”.

   Explodindo de alegria, curiosidade e expectativas, lá fomos nós. O passeio de canoa, por si só já era uma felicidade para mim, imagine então, estar diante da possibilidade de ver confirmada a minha teoria vulcânica!

   Quando descemos da canoa o entusiasmo já murchou! Não recordo com que calçado eu fui. Mas lembro muito bem do susto ao afundar os pés naquele lodo... e eu imaginara que desceria numa praia de areia branquinha.

   O capim que rodeava a tal ilha, de longe  era tão lindo, tão verdinho. De perto, meu Deus, como doíam e incomodavam as espetadas dos espinhos que eles tinham nas pontas.

   Acho que nada teve um poder tão grande de me fazer ficar uns instantes em silêncio. Que decepção! Não vi pedra vulcânica alguma, apenas umas rochas de granito, caranguejos e um inseto semelhante à  barata e muito mau cheiro.

  O morro visto de perto era o tal casqueiro, onde ficava o sambaqui. De vulcão, não tinha nada, nem o formato. Desencantadas, voltamos para casa, finalmente em silêncio, para felicidade do seu Galdininho e de sua esposa, a dona Liquinha.

   Chegou o dia da aula semanal de Geografia. Contamos para a professora sobre a nossa odisseia. Ela, muito atenciosa como era, nos intimou a apresentarmos um relatório, que intitulei de “A ILHA”, e recebeu nota DEZ!

   Depois da nota inesperada nossos pés ainda doeram por algum tempo com as espetadas dos espinhos do capim, que inflamaram. Diante de tudo isto, nos demos por satisfeitas, nunca mais falamos em ilha vulcânica perto do seu Galdininho e encerramos a nossa fase dos vulcões.







Esta foi uma foto tirada durante as celebrações do "lava-pés" na semana santa. O seu Galdininho tem a faixa "Simão".

EU NÃO ESTOU BÊBADA PAI


         Lá pela época, um pouco antes dos anos 70, quando eu ainda dormia no sofá da sala, certo rapaz conhecido no bairro do Magalhães, que morava na rua do campinho de futebol, em frente a Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Navegantes, havia feito muito sucesso como cantor. O nome dele era Adilson Adriano, sua música, chamava-se “Seu Nome” e foi muito tocada nas rádios Difusora e Garibaldi. Esse ídolo da terrinha era praticamente nosso vizinho, tinha quase a mesma idade da minha irmã Detinha e de sua amiga Flora e, tal como as duas, também havia perdido a mãe quando ainda muito criança.
         Era Natal, que em nossa casa era comemorado apenas no almoço do dia 25. Não fazíamos a tradicional ceia da meia noite, meus pais iam à missa do galo e a troca de presentes era realizada de manhã.
          E naquele ano, seguindo a tradição, meus pais foram para a missa do galo. Eu, muito criança, fui dormir quando me mandaram, no sofá da sala. Em dado momento acordei sob a cantoria das vozes de minha irmã Detinha, de sua amiga Flora, juntamente com Adilson Adriano, no varandão de nossa casa, tocando no violão uma música que ele havia composto em homenagem a sua finada mãe. O três, depois de muitos copos de uma bebida chamada Vermut (nem sei se ainda existe), estavam chorando suas mágoas de órfãos e repetiram a tal música várias vezes durante aquele festival de choradeiras. E eu fiquei acordada ouvindo tudo. Ou era o que eu pensava.
         Pois, de uma hora para outra, me acordei com o meu pai abrindo a porta da sala, adentrando com muito estardalhaço, em direção ao quarto onde as minhas irmãs dormiam.
-Abre esta porta Detinha, eu sei que estás aí!
         Eu sentei rapidamente no sofá e vi o meu pai forçando a porta do quarto para entrar e minha irmã resistindo aquela investida irada, fazendo movimento contrário, fechando a porta com o próprio corpo.
-Que vergonha, Meu Deus! Gritava ele, a minha filha bêbada!
-Calma!Eu não estou bêbada pai, eu não estou bêbada!
         Mas, como ele poderia se acalmar? Se hoje tenho na memória, que mesmo distante do quarto, eu podia sentir o cheiro da bebida que dela exalava, enquanto respondia com a voz embargada, mole, balbuciante e contorcida, defendendo-se o quanto podia, numa vã tentativa de evitar a  surra que levou.
         Nos anos que se seguiram, sempre riamos muito ao lembrar aquele episódio. Detinha sempre zombando, contava que a cantoria começara na “pracinha” onde os três beberam apenas, algo em torno de três ou quatro garrafas de Vermut, mas, como estavam de estômago vazio, ela e a Flora ficaram tontas mais rápido que Adilson. Após certo tempo, os três resolveram ir para casa, porém, decidiram tocar e cantar mais um pouquinho no varandão lá de casa. Detinha contava rindo  que somente se deu conta que a missa do galo já havia terminado, quando começou a ver somente as sombras das pernas das pessoas caminhando, contra a luz do farol dos carros que passavam pela rua. A missa do galo terminara. E isto significava que meu pai iria pegá-los com a boca na botija. Como já estavam muito tontos, cada um correu para suas casas e minha irmã para o seu quarto, antes que o meu pai chegasse.
         Acontece que eles se esqueceram das garrafas vazias atrás do muro, junto ao portão de entrada. Quando nosso pai  chegou da missa, quase que tropeçou nas garrafas e ainda se deparou com as inúmeras bitucas dos cigarros que o trio cantante  fumara. Para aumentar o caldo, minha irmã, já havia levado uns tantos tabefes e não parava de fumar. Ai, vendo tudo isto, juntou-se a fome com a vontade de comer e meu devoto pai, esquecido das orações que acabara de fazer ao Jesus menino, irou-se de vez, diante da desobediência insistente de minha irmã.
         A cena, naquele momento extremamente apavorante,com o passar do tempo, tornou-se cômico para nós relembrar minha irmã com a voz enrolada, o bafo  etílico empesteando todo o ar,  dizendo que não estava bêbada e ainda tentando impedir o acesso de meu pai ao quarto, tudo isso teve o efeito de apagar um incêndio jogando gasolina sobre as chamas!



Homenagem à esta figuraça, no décimo ano de seu falecimento.
Meu eterno amor, gratidão e admiração!