Meu Pai era uma pessoa
com modo de vida ímpar e durante minha primeira infância dividiu comigo muitas
das suas “saudades”, que passaram a ser minhas também.
Quando não estava
limpando suas gaiolas de passarinhos, ou o quintal, ele estava no escritório
fazendo requerimentos para alguma viúva de algum colega do “Porto”, solicitando
algum provento atrasado, o tradicional Imposto de Renda, ou curtindo os livros
que ele lia e relia sem parar.
Porém, se não estivesse
ocupando seu tempo nestas atividades, ele o passava sentado, irremediavelmente,
naquela janela, de onde podia ver todo o quintal dos fundos, suas gaiolas, seus
passarinhos, e também suas lembranças.
Única criança pequena
na casa, o seu colo era sempre meu. E era a única que podia ficar ao seu lado o
tempo que quisesse, pois a mim, nesta época, não eram destinadas tarefas domésticas.
Quando eu chegava de
mansinho na cozinha, ele já estava olhando o passado e o futuro naquela janela.
Era muito, muito difícil, naquela época, encontrá-lo no presente. Em geral,
minha carinha de “Pai, me dá um colo”, tirava-lhe do mundo em que se colocou após a
tragédia que se abateu sobre nossa família, no dia de seu aniversário.
Ao perceber minha
presença, Ele me dirigia o mais doce dos olhares, batia com as mãos nas pernas
e me dizia:
-Vem cá!
Devidamente acomodada, eu
encostava a cabeça no seu ombro quentinho e ele, então, dividia comigo as suas
saudades, cantarolando as músicas que embalaram a minha infância, tão triste
quanto a sua sobrevida.
-Marina, morena Marina,
você se pintou!
-Encosta a tua
cabecinha no meu ombro e chora, e conta logo tuas mágoas todas para mim!
- No Rancho Fundo, bem
prá lá, do fim do mundo...
Ele sabia quase todas
as letras da Emilinha Borba, que ele dizia “ser sua fã”. Nunca adiantou eu lhe
explicar que era ao contrário. Ele sorria e continuava dizendo do mesmo jeito.
Contudo, eu percebia
certa diferença no tom de sua voz, nas vezes em que ele cantava:
“Saudade palavra triste, quando se perde um
grande amor,
Na estrada longa da
vida, eu vou chorando a minha dor!
Meu primeiro amor, tão
cedo acabou só a dor deixou neste peito meu.
Meu primeiro amor foi como uma flor que
desabrochou e logo morreu”
Nos momentos em que
cantava o refrão, ele me embalava mais forte, como se a sua emoção chegasse ao
auge e, nestes momentos, meu coração desconfiava que ele se embrenhava mais
ainda, num outro passado em que fora tão feliz. Ele recordava-se dela, sua
primeira paixão de adolescente.
Um dia arrisquei
perguntar para quem cantava aquela música e ele contou a história do seu
primeiro amor, uma tal Mariazinha, namorisco que minha avó Rosa (madrasta dele)
havia tratado de dar fim, porque moravam na mesma casa.
Muito surpresa, eu o
ouvi contar sobre a tristeza e decepção por não ter podido viver este amor, tão
ingênuo e tão belo. Ele, sempre tão sisudo e rígido, transformou-se num
garotinho apaixonado, ante meus olhos! Algo inimaginável para mim, que o via
como um pedestal de força e coragem.
Depois, ele contava
algum “causo estranho”, alguma teoria sobre algum extraterrestre, e voltava a
cantarolar as músicas que tocavam nos tempos de minha mãe. Nestes momentos eu
tentava fazer-lhe algumas perguntas sobre ela, que eu não conhecera. Algumas
vezes, obtive sucesso, mas o seu olhar sofrido e as lágrimas que nele brilhavam
me faziam desistir do intento e eu me conformei a viver sem conhecer aquela que
me dera à vida.
Então, quando lá pelas
cinco horas da tarde minha madrasta deixava a máquina de bordar e vinha fazer o
café, ele me dava uma palmadinha dizendo:
-Agora tu vais brincar
um pouquinho, cambacica (pequeno pássaro), que eu vou limpar as gaiolas e
guardar os passarinhos.
A janta então começava
a ser preparada e o enlevo se partia, ele não falava de outros amores na frente
dela, para não magoá-la. Eles viveram um casamento muito feliz.
E assim, passei minha
infância e ele, boa parte dos doloridos anos que se seguiram a morte de minha
mãe. Ao dividir comigo suas lembranças mais íntimas, ele me tornou sua
cúmplice, e talvez, o único dos filhos a quem permitiu conhecer este seu lado
tão romântico.
Sentada em seu colo,
por vezes, naquelas tardes, embalada por ele e pelas músicas que cantava, eu olhava para ele e no seu rosto
marcado, tão criança ainda, eu conheci a descrição e a tradução da palavra:
SAUDADE!