sábado, 3 de setembro de 2011

A SAUDADE QUE TEM O NOME DE PAI




   Meu Pai era uma pessoa com modo de vida ímpar e durante minha primeira infância dividiu comigo muitas das suas “saudades”, que passaram a ser minhas também.
   Quando não estava limpando suas gaiolas de passarinhos, ou o quintal, ele estava no escritório fazendo requerimentos para alguma viúva de algum colega do “Porto”, solicitando algum provento atrasado, o tradicional Imposto de Renda, ou curtindo os livros que ele lia e relia sem parar.
  Porém, se não estivesse ocupando seu tempo nestas atividades, ele o passava sentado, irremediavelmente, naquela janela, de onde podia ver todo o quintal dos fundos, suas gaiolas, seus passarinhos, e também suas lembranças.
  Única criança pequena na casa, o seu colo era sempre meu. E era a única que podia ficar ao seu lado o tempo que quisesse, pois a mim, nesta época, não eram destinadas tarefas domésticas.
  Quando eu chegava de mansinho na cozinha, ele já estava olhando o passado e o futuro naquela janela. Era muito, muito difícil, naquela época, encontrá-lo no presente. Em geral, minha carinha de “Pai, me dá um colo”,  tirava-lhe do mundo em que se colocou após a tragédia que se abateu sobre nossa família, no dia de seu aniversário.
  Ao perceber minha presença, Ele me dirigia o mais doce dos olhares, batia com as mãos nas pernas e me dizia:
-Vem cá!
  Devidamente acomodada, eu encostava a cabeça no seu ombro quentinho e ele, então, dividia comigo as suas saudades, cantarolando as músicas que embalaram a minha infância, tão triste quanto a sua sobrevida.
-Marina, morena Marina, você se pintou!
-Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora, e conta logo tuas mágoas todas para mim!
- No Rancho Fundo, bem prá lá, do fim do mundo...
  Ele sabia quase todas as letras da Emilinha Borba, que ele dizia “ser sua fã”. Nunca adiantou eu lhe explicar que era ao contrário. Ele sorria e continuava dizendo do mesmo jeito.
  Contudo, eu percebia certa diferença no tom de sua voz, nas vezes em que ele cantava:
 “Saudade palavra triste, quando se perde um grande amor,
  Na estrada longa da vida, eu vou chorando a minha dor!
  Meu primeiro amor, tão cedo acabou só a dor deixou neste peito meu.
  Meu primeiro amor foi como uma flor que desabrochou e logo morreu”
 Nos momentos em que cantava o refrão, ele me embalava mais forte, como se a sua emoção chegasse ao auge e, nestes momentos, meu coração desconfiava que ele se embrenhava mais ainda, num outro passado em que fora tão feliz. Ele recordava-se dela, sua primeira paixão de adolescente.
  Um dia arrisquei perguntar para quem cantava aquela música e ele contou a história do seu primeiro amor, uma tal Mariazinha, namorisco que minha avó Rosa (madrasta dele) havia tratado de dar fim, porque moravam na mesma casa.
  Muito surpresa, eu o ouvi contar sobre a tristeza e decepção por não ter podido viver este amor, tão ingênuo e tão belo. Ele, sempre tão sisudo e rígido, transformou-se num garotinho apaixonado, ante meus olhos! Algo inimaginável para mim, que o via como um pedestal de força e coragem.
  Depois, ele contava algum “causo estranho”, alguma teoria sobre algum extraterrestre, e voltava a cantarolar as músicas que tocavam nos tempos de minha mãe. Nestes momentos eu tentava fazer-lhe algumas perguntas sobre ela, que eu não conhecera. Algumas vezes, obtive sucesso, mas o seu olhar sofrido e as lágrimas que nele brilhavam me faziam desistir do intento e eu me conformei a viver sem conhecer aquela que me dera à vida.
  Então, quando lá pelas cinco horas da tarde minha madrasta deixava a máquina de bordar e vinha fazer o café, ele me dava uma palmadinha dizendo:
-Agora tu vais brincar um pouquinho, cambacica (pequeno pássaro), que eu vou limpar as gaiolas e guardar os passarinhos.
  A janta então começava a ser preparada e o enlevo se partia, ele não falava de outros amores na frente dela, para não magoá-la. Eles viveram um casamento muito feliz.
  E assim, passei minha infância e ele, boa parte dos doloridos anos que se seguiram a morte de minha mãe. Ao dividir comigo suas lembranças mais íntimas, ele me tornou sua cúmplice, e talvez, o único dos filhos a quem permitiu conhecer este seu lado tão romântico.
  Sentada em seu colo, por vezes, naquelas tardes, embalada por ele e pelas músicas que  cantava, eu olhava para ele e no seu rosto marcado, tão criança ainda, eu conheci a descrição e a tradução da palavra: SAUDADE!








Um comentário:

  1. Nossa, isto é uma crônica das melhores que já li. Veja que destino. Meu pai faleceu uma semana após o meu aniversário de 2 anos. Nesses quase 70 anos de saudade, ainda sonho com a graça de sentar em seu colo, como fiz com meus filhos e faço hoje com meus netos.Estou emocionado, não só pelo enredo, mas a forma como foi conduzido deixou-o leve e muito terno.

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