INFÂNCIA
Ao comprar uma máquina de costura novinha em folha, último
tipo, viajei para um tempo distante, quando tinha algo em torno de 3 ou 4 anos
de idade. Morávamos na “casa da dona Celina”, para onde fomos quando minha mãe
morreu.
Minha nova mãe bordava a máquina, no quarto onde dormia com
meu pai. Eu dormia no mesmo quarto com eles, porque a casa não tinha muitos cômodos
e éramos oito pessoas. Ainda tenho lembrança da minha cama pequena,
transversalmente ao lado da deles. No quarto, havia uma janela alta, minha mãe
precisava subir na cama para falar com a prima Maninha, que era sua vizinha, e
também bordadeira.
Como faziam os trabalhos juntas, numa daquelas tardes, ela
parou de bordar e foi na casa da prima, fazer algo que não lembro o que era. Mais
do que depressa eu pulei para a banqueta, que era alta.... e comecei a bordar!
Só que, para bordar, era necessário movimentar o bastidor com
as duas mãos e eu deixei o dedo indicador exatamente no meio do bastidor,
próximo demais da agulha. Bordei alguns segundos e logo, traiçoeiramente, a
agulha entrou firme na unha do dedo indicador direito
- Ô manhêêê.... deve
ter sido um grito muito agudo!
Pobre mãe! Chovia, ela veio correndo. O sangue deve ter manchado o
tecido, quem sabe, teve até que pagar por um tecido novo, pois manchas de
sangue não saem com muita facilidade.
Engraçado, não me lembro da dor no momento de retirar a agulha do dedo.Esta dor, contudo, não deve ter sido tão forte a ponto de me
fazer desistir de bordar, porque eu ainda repeti a façanha mais uma
vez!Novamente, o mesmo grito! A mesma correria.
Assim, ela não teve alternativa a não ser me ensinar a bordar.
Primeiro, o cordonê, depois os bordados maiores. Durante algum tempo eu bordei.
Cheguei até mesmo a receber o elogio máximo de uma virginiana perfeccionista:
- Olha só, Roldão! O
cordonê dela é melhor do que o meu!
Contudo, minha alegria durou pouco. Embora adorasse bordar,
ela quase não me permitia, seja porque precisava estar bordando o tempo todo,
eram muitas encomendas, seja porque as linhas eram sempre muito caras, e mesmo
que eu pedisse as sobras, ela nunca as dava, porque dizia que ia precisar!
Mas, ainda acho que ela teve mesmo foi ciúmes! Do seu bordado,
daquela arte tão preciosa, que ela fazia tão bem. Como estava sempre junto com
ela, ouvia embevecida, as suas conversas com a prima Maninha, sobre como fazer,
o que fazer, quando fazer! Era um universo fascinante! Transformar um pedaço de
pano em algo tão bonito de se ver! E os jogos de cama, em bordado Richillieu,
então? E os bichinhos? Tão mimosos ficavam nos enxovais de bebê que elas faziam!
Ninguém bordava como aquelas duas!
- “Qués veis, Maria,
fais assim ó”!
O tempo passando e eu, sempre curingando, perguntando como
fazer. Ficava ao seu lado, olhando para ela bordar, via suas caretas, acompanhei
sua visão, acabando, pouco a pouco, naquele labor noturno, até 2 ou 3 horas da
madrugada.Tudo tinha que ser sempre muito perfeito, nada de mais ou menos.
Havia também os serões que elas faziam. Eram sempre antes da
Festa de Santo Antônio dos Anjos da Laguna. Sim, a Opa vermelha. Tinha um
emblema do Santíssimo Sacramento, bordado em fios dourados. Ficava lindo, o meu
pai, vestido naquele traje: terno marrom, sob a opa vermelha. E lá se ia ele,
todo faceiro e, aos meus olhos, lindo de morrer!
Outro serão, acontecia em 7 de setembro! Elas bordavam os
bolsos dos uniformes do Colégio Ana Gondin e, às vezes, do Jerônimo Coelho!
Viravam as noites bordando, na casa da Maninha. Eu ia junto com eles. Às vezes,
ela e o pai voltavam para casa e me deixavam dormindo naquela cama de casal,
tão grande! E eu, sempre tão medrosa de dormir sozinha, nem ligava quando me
acordava, no outro dia, sem eles.
Até que, passados alguns anos, quase chegando ao final do
Ginásio, eu devo ter falado algo como bordar com ela, ou bordar para fora
também! A resposta foi taxativa:
-Não! Tu não vais
bordar para fora coisa nenhuma, que isto não é vida! Vais é trabalhar num
escritório, tu vais gostar, nasceste foi
para isto!
E assim, com esta sentença, adormecida foi, minha vocação para
bordadeira!
Mas, no meu coração, permanecem aquelas imagens, que soam
quentinhas, de tão boas que são. Nem a lembrança da agulha enfiada no meu
indicador me remete a alguma dor.... muito pelo contrário, apenas me lembra de
quão obstinada eu era, e isto me faz bem.
O seu exemplo de esmero, aquele primor de bordado, o avesso
mais do que perfeito que ela fazia e ostentava com tanto orgulho, foram meu
espelho, para as coisas que fiz e para os diversos trabalhos que realizei ao
longo dos anos. Nunca comprei bordados prontos, nenhum me agradava, porque
sempre ia direto ao avesso: terríveis!
Agora, de cabelos brancos em minha nova infância, estou diante
desta máquina de costura, tão novinha, me vendo novamente naquela expectativa
de poder fazer algo tão belo quanto os bordados que ela fazia. Talvez, seja uma
forma de reviver aqueles momentos de prazer, de reencontrar-me com a mãe que
tive, sem nunca poder realmente ter!
Belo texto! Uma linda lembrança da infância na Laguna. Texto muito bem escrito ,me prendeu a atenção do início ao fim. Parabéns e abraços.
ResponderExcluirHamilton Santos
Obrigada Hamilton! Palavras de incentivo são sempre bem vindas! Até mesmo em forma de crítica, porque nos mostram onde temos que melhorar! Abraços!
ExcluirMaravilhoso texto.formidavel a maneira de expressar gratidão pelos detalhes tão preciosos de tua infância minha tia.
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