domingo, 12 de julho de 2020


O FOGÃO A LENHA

Em mais uma tarde de confinamento, meu companheiro de cela me explica o funcionamento de um fogão de tubo, que ele aprendeu a fazer, numa das tantas lives do youtube que tem feito, desde o evento do COVID. A chegada do temporal levou consigo a luz elétrica, então, este papo cabeça foi a luz de velas.
Em determinado momento divaguei sobre porque tenho tanta afinidade com fogões a lenha. Já tivemos um, em nossa antiga casa, a nossa primeira construção juntos.
Quando ele me fala que este fogão deixa a lenha numa posição que queima mais devagar, lembrei-me da sensação que me provocava a imagem da lenha queimando, dos cheiros que exalava e dos estalos que fazia na cozinha da minha infância.
Quando chegava da escola, ainda no primeiro ano, encontrava com meu pai sentado, “empongado” na sua inseparável japona e no seu boné, num cantinho, fumando seu palheiro, olhando para as chamas, bem perto do bule de café quentinho, que nunca saía de cima da chapa. Era inverno e ali nós ficávamos juntinhos. Eu ganhando meu colo e ele, contando suas histórias infinitas, que eu adorava tanto.
Com frequência, rolava uma dança, os outros filhos chegavam da escola e às 17:00 horas havia o programa de músicas “rancheiras” e os sapatos arrastavam naquele chão, feito de cimento queimado vermelho, enquanto aguardávamos a janta ficar pronta. Meu coração se inundava de uma felicidade pura, por que todos davam um jeito de me incluir na brincadeira. Ou me colocavam sobre os pés, me pegavam no colo ou valsavam comigo de qualquer jeito mesmo, o importante era dançar.
A música vinha de um rádio de madeira velho, que ele consertara, como já fizera com muitos outros. Era um som rouco, mas ninguém pensava em algo melhor. Dele saíam as notícias da manhã, quem morrera, quem tivera alta do hospital, da tarde e da noite. Este veículo, hoje tão esquecido, era o meio de conectar todas as comunidades, até as mais afastadas.
E foi numa destas tardes de inverno que eu cheguei e busquei seu colo, muito confusa. A professora do primeiro ano havia dito:
- Ah! Tu és a filha daquela senhora que morreu?
-Não! A minha mãe é a Maria, ela não morreu!
-Não! A Maria não é tua mãe. A tua mãe morreu atropelada, a Maria te criou.
Eu sabia, sempre soube. Mas no fundo do meu coração eu queria que aquelas histórias, aqueles comentários que eram feitos, não me dissessem respeito. Eu queria que ela fosse realmente a minha mãe. Por esta razão, a forma como me foi dito causou-me um “choque de realidade”, que me desnorteou!
Naquela tarde, eu perguntei para ele se era verdade. Ele me olhou por muito tempo e contou. Tudo! Durante o relato as lágrimas foram descendo pelo seu rosto enquanto meu coração se desmanchava em desalento por uma realidade tão cruel, que materializava o que eu já sabia, sem saber que sabia: eu não tinha mãe, sequer a conhecera, não tinha qualquer lembrança dela.
Quando terminou de me contar a “sua história”, secou os olhos com a manga da japona e pegou minha mão me fazendo tocar na cicatriz em sua testa, lembrança da carroceria do caminhão, que ele mais tarde nomeou como “uma fera ou monstro” saído do nada, que o deixou nocauteado no chão, enquanto seu amor ,de 25 anos de casamento, partia desta vida.
Esta foi a primeira, das inúmeras vezes, em que veria meu pai chorar.
Palhoça, 30/06/2020

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